Série especial do JN mostra iniciativas de recuperação dos biomas do Brasil
27/10/2025
(Foto: Reprodução) Mata Atlântica abre série especial sobre esperança nos biomas brasileiros
Faltam duas semanas para a Conferência do Clima da ONU, em Belém, e o Jornal Nacional vai mostrar iniciativas de recuperação dos biomas do Brasil. Elas apontam caminhos possíveis para enfrentar o desafio global da crise climática por meio de ações locais. Nesta série especial de reportagens, Pedro Bassan e Lucas Cerejo começam pela Mata Atlântica, com os sinais de esperança no ressurgimento do verde.
Existe vida depois do fim do mundo? É só perguntar para os Maxakalis, porque o mundo para eles já acabou. Os pajés têm certeza disso toda vez que a flecha é lançada e não chega a lugar nenhum.
Um canto acorda as montanhas de Minas. É a canção do gavião, e que vista linda ele teria se estivesse por lá. Só que já faz tempo que o gavião não aparece. Os Maxakalis são um povo da floresta, mas cadê a floresta?
“Quando eu era assim, eu vi um pouco aqui. Mas quando eu cresceu, aí acabou”, diz João Bidé Maxakali.
“Antigamente tinha, e hoje não tinha nada, não. Só tem capim, cheio”, conta Roberto Maxakali.
As terras indígenas na divisa de Minas com a Bahia começaram a ser demarcadas na década de 1940. Mas só em 1999 os fazendeiros que ainda ocupavam a área foram embora. Ao longo de pelo menos 100 anos, as fazendas foram destruindo a Mata Atlântica na região. Deixaram para trás capim, muito capim - o maior inimigo da floresta. Durante as chuvas, cresce muito rápido e abafa as plantas. Na seca, consegue ser ainda pior.
“Esse capim tende a queimar com muita facilidade. E capim e fogo é uma combinação que é pura gasolina”, afirma o brigadista voluntário Anderson de Freitas e Silva.
Dois anos atrás, um grande incêndio destruiu 20% do território Maxakali, chegando bem perto de muitas aldeias. O capim que cerca essa nação por todos os lados é perigo e pobreza.
“Eu estava traduzindo uma fala Maxakali e me perguntaram por que toda hora eles falam: ‘tá fatã, tá fatã’. Aí eu expliquei: ‘tá fatã' é ‘está faltando’, é um empréstimo do português. Eles não têm na língua essa expressão ‘está faltando’ porque nunca faltou nada quando havia floresta”, explica Roberto Romero, antropólogo e coordenador do projeto Hãmhi.
Série especial do JN mostra iniciativas de recuperação dos biomas do Brasil
Jornal Nacional/ Reprodução
Esse tempo de prosperidade, em que o alimento caía do céu, sobrevive nos rituais. O canto é para receber dois morcegos, espíritos da natureza. Os Maxakalis cantam o tempo todo, a vida inteira. São mais de 300 horas de repertório, com músicas refinadas e letras complexas.
“O canto de uma minhoca que ficou enganchada entre dois galhos porque alguém esqueceu ela ali, que foi pescar, e aí ela está vendo o mundo de cima para baixo e vendo como é a terra embaixo, por exemplo. O que está no imaginário deles são esses detalhes do mundo da floresta”, diz Rosângela de Tugny, coordenadora-geral do projeto Hãmhi.
Para que parede se a escola e a natureza são uma coisa só? Na língua Maxakali, os animais ocupam um lugar especial. Eles são evocados nos cânticos e representam o sagrado. Só que hoje em dia não adianta mais chamar os animais. Eles foram embora junto com a floresta. Mesmo assim, o nome deles continua sendo ensinado, na esperança de que um dia vão voltar.
“Uma coisa comum quando os Maxakalis visitam Belo Horizonte é que eles pedem para ir ao zoológico. No zoológico é o único lugar onde eles conseguem ver várias espécies que eles já não encontram aqui, mas que viviam aqui na Mata Atlântica”, diz Roberto Romero.
Os Maxakalis sentem saudade dos animais. Tanta que param em frente a eles e ficam entoando os cantos de cada um. Mas e se os bichos voltassem para perto outra vez? E se fosse possível reconstruir a floresta? É exatamente o que os Maxakalis estão fazendo. E, assim, uma árvore de cada vez, eles já começaram a mudar a paisagem. É o projeto Hãmhi, que significa “terra viva”.
No que era um mar de capim, ilhas de árvores já fazem muita diferença. Em dois anos, o Hãmhi já deu muitos frutos - literalmente. Os moradores das aldeias são responsáveis por tudo - plantam, cuidam e colhem - e acreditam. O projeto é do Ministério Público de Minas Gerais. As multas ambientais se transformam em recursos para quem acaricia a terra com as mãos.
“Foi um propósito institucional para que a gente resgatasse a dignidade dessas comunidades. A gente precisa devolver o ambiente para que eles cuidem. Eles acreditam que a própria recuperação ambiental das comunidades onde vivem já é o suficiente para que eles retomem o processo de dignidade nas suas vidas”, diz Paulo de Tarso Morais Filho, procurador-geral de Justiça de MG.
Os Maxakalis foram treinados e hoje são agentes de plantio, brigadistas, viveiristas. Santinha diz que as plantas são como crianças e o viveiro é o útero da floresta. Mesmo com tanto trabalho, parece uma luta desigual. Um pequeno retângulo contra um vazio imenso.
Será que eles vão conseguir? Existem muitas razões para acreditar que sim. E a principal delas é: os Maxakalis estão no Brasil. O mesmo país que ao longo da história vem destruindo tantas matas dos indígenas, hoje é também o líder mundial em tecnologia para restaurar grandes extensões de floresta.
Série especial do JN mostra iniciativas de recuperação dos biomas do Brasil
Jornal Nacional/ Reprodução
Bem-vindos a um santuário da natureza. Preparados para entrar em um parque nacional? Nada disso. É a porteira de uma fazenda. Isso mesmo, fazenda. Um lugar onde as pessoas plantam para ter lucro. Lá, eles plantam Mata Atlântica.
“Essa é uma fazenda que era inteiramente dedicada à pecuária e agora ela é inteiramente dedicada à restauração ecológica. A mitigação do clima financia a restauração da floresta - e é a única atividade da fazenda”, conta Bernardo Strassburg, fundador IIS e re.green.
Era capim, virou uma fazenda-floresta. Lugares assim são cada vez mais comuns no Brasil. Só o projeto já plantou florestas em nove fazendas – três no sul da Bahia. A área total restaurada é de 17 mil hectares. Isso é quase o triplo do território dos Maxakalis, logo ali em Minas.
“É importante o Brasil perceber que nós somos chave na questão das mudanças climáticas globais porque nenhum outro país tem tantas áreas que possam ser trabalhadas na restauração ecológica como o Brasil tem”, afirma Paulo Artaxo, coordenador do Centro de Estudos Amazônia Sustentável da USP.
Um grande país tem grandes planos. A meta nacional é restaurar 12 milhões de hectares até 2030, uma área equivalente a três vezes o estado do Rio de Janeiro. O cientista ambiental Bernardo Strassburg lidera pesquisas nessa área em que o Brasil deu um grande salto tecnológico.
“O Brasil é líder na ciência de restauração ecológica nos trópicos. É uma tecnologia que começa com algoritmos que usam inteligência artificial para nos ajudar a identificar as melhores áreas para fazer os projetos de restauração. Uma análise que envolve mais de 50 variáveis de clima, solo e relevo. Antigamente, isso levava seis meses. Agora, com os algoritmos, leva 30 segundos”, afirma Bernardo Strassburg.
O novo salto, da escala dos milhares para os milhões de hectares, tem um outro segredo além da ciência: o dinheiro. Nos últimos anos, a restauração ambiental se tornou um negócio tão grandioso quanto lucrativo, com a venda de créditos de carbono. O produtor rural Caio Penido, presidente do Instituto Mato-Grossense da Carne, é parceiro em um dos projetos.
“Agora, acho que chegou no mercado. Chegou na porteira das fazendas. O que eu tenho certeza é que ela vai ser mais lucrativa do que uma pecuária de baixa produtividade. Está tudo integrado: a produção agropecuária com o carbono, a biodiversidade, a fauna, a flora, as águas. Tudo faz parte de um mesmo ecossistema dentro da propriedade, em uma região. Um não vive sem o outro”, diz Caio Penido.
O dinheiro vem principalmente de grandes empresas estrangeiras. Elas pagam o plantio de árvores no Brasil para compensar o gás carbônico que emitem lá fora. E se surpreendem com o resultado.
“É muito rápido. Quando vem gente de fora, de países temperados, eles ficam achando que uma área como essa tem 15 anos, quando na verdade tem um ano e nove meses”, conta Bernardo.
Maxakalis
Jornal Nacional/ Reprodução
Quem está nessa terra há muito tempo não se espanta nem um pouco. Eles sabem que a tranquilidade da mata esconde a velocidade alucinante da vida irrompendo em todas as direções.
Os Maxakalis cantam para o pôr do sol. E não é que esse canto está cada vez mais bonito? Porque, pela primeira vez, depois de muito tempo, o amanhã se anuncia melhor do que hoje. Os bichos que só existiam nas canções estão começando a voltar. Com as árvores, a sabedoria do passado vai ter valor no futuro. Desde que nasce, cada Maxakali carrega dentro de si mesmo um pedacinho da floresta. Agora, estão reconhecendo a paisagem do lado de fora. Hãmhi: o povo que sobreviveu ao fim do mundo hoje tem certeza de que a terra está viva.
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